Depois de ouvir o episódio, Leonardo Fernandes se empolgou e iniciou uma thread no twitter listando inúmeras pesquisas que atualmente usamos na prática de desenvolvimento de software e nem nos damos conta de onde vieram. Em cima dessa thread, outros pesquisadores também deram suas contribuições.
SENTA AÍ QUE A LISTA NÃO É PEQUENA. E TÁ LONGE DE ESTAR COMPLETA!
Sabe o estilo arquitetural REST, que a grande maioria dos Web Services hoje em dia seguem? Pois então, foi a tese de doutorado de Roy Thomas Fielding, defendida em 2000, com o título de: Architectural Styles and the Design of Network-based Software Architectures. Mas esse exemplo do REST talvez já seja bem conhecido, como bem lembrou Roberta Arcoverde na nossa conversa no Hipsters Podcast. Então, vamos ver mais exemplos.
Conhece as Linguagens Funcionais como Erlang, Elixir, Clojure, e outras várias que hoje estão super “na moda”? Pois então, a raiz é o Cálculo Lambda, teoria proposta por Alonzo Church. Ficou demonstrado que o Cálculo Lambda é um modelo universal de computação e por isso pode simular uma máquina de Turing (a.k.a o modelo teórico dos nossos computadores). Mas não só o modelo formal vem da academia, as primeiras linguagens surgiram por lá. A primeira família de linguagens de programação funcional (LISP), veio do professor da universidade de Stanford, John McCarthy.
E a palavra Refactoring, lhe é familiar? Pois então, teve origem na tese de doutorado de William Opdyke em 1992. O título da tese é: Refactoring Object-Oriented Frameworks. Uma curiosidade levantada por Leonardo Fernandes, é que a comunidade de compiladores não concordava com o conceito, pois achavam que transformação que conserva comportamento era função deles. Adolfo Neto complementou dizendo que não foi só esta tese. Foram duas!A outra, do William Griswold, chamava refactoring de restructuring. Tudo bem contado no artigo: The Birth of Refactoring: A Retrospective on the Nature of High-Impact Software Engineering Research. E Martin Fowler, onde entra nessa história? Foi fundamental para a difusão e organização da ideia que conhecemos, mas não foi de onde as coisas começaram.
Já programou, ou programa, em C++, C# ou Java? Então com certeza você conhece o conceito de Generics (Templates em C++). Quem deu início foi a pesquisa publicada em 1988 no artigo científico com título bem sugestivo: Generic Programming. Os autores são os pesquisadores David Musser e Alexander Stepanov. Ainda assim, você poderia dizer que essas linguagens, apesar de ainda serem largamente utilizadas, não estão “na moda”. Pois então, TypeScript também adere ao conceito. E não fica por aí, temos Rust, Kotlin e Swift no mesmo barco. Até Golang já tem proposta aberta para incluir o conceito de generics.
Em 1974, um artigo de Barbara Liskov e Stephen Zilles intitulado Programming with Abstract Data Types introduz o conceito de Abstract Data Types (ADT). O termo é pouco usado atualmente, mas a ideia segue bem viva. Ela diz que um tipo é caracterizado pelas operações que você pode realizar sobre ele. Eu sei, você chama isso de Classe.
Mas 1974 faz muito tempo, não tem algo mais novo? Tem sim!
Já usou o Apache Spark, framework de computação distribuída que permite programar clusters com paralelismo e tolerância a falhas? Isso mesmo que você já deve estar imaginando, surgiu numa tese de doutorado. Mais especificamente de autoria de Matei Zaharia, defendida no não tão distante ano de 2014. E, como bem mencionou Fábio Petrillo na thread do twitter, Matei e seus colegas implementaram originalmente antes de ser doado à Apache Foundation. O título da tese é: An Architecture for Fast and General Data Processing on Large Clusters. Ainda dentro desse contexto, Rodrigo Müller apontou que grande parte dos sistemas distribuídos usam os algoritmos de consenso Paxos/Raft, que foram desenvolvidos na academia. O Raft, que é um algoritmo mais novo, apareceu na tese de doutorado de Diego Ongaro, defendida em 2014 com o título Consensus: Bridging Theory and Practice.
E o “assistente” de programação GitHub Copilot que deixou a comunidade dev estarrecida em 2021? Conhece? Não sei ao certo qual a equipe do GitHub que trabalhou nesse produto, mas muito provavelmente tem pesquisadores doutores no meio, que com toda certeza beberam da fonte dos vários artigos publicados sobre isso no meio acadêmico nos últimos anos. Só pra exemplificar, tem o artigo de Christoph Treude, professor da Adelaide University na Austrália, de 2017! O título é NLP2Code: Code Snippet Content Assist via Natural Language Tasks. Dá uma olhadinha nesse artigo e me diz qual o nível de semelhança (de 99% a 100% 😁) dele com o GitHub Copilot. Falo dele especificamente porque conheço Christoph e temos até colaborações e papers publicados juntos, mas há varias outras pesquisas propondo e refinando essa tecnologia no meio acadêmico, há pelo menos uma década.
E no Brasil, não tem nada? Tem sim!
Se você atua no mercado de desenvolvimento de games, com certeza já ouviu falar da Linguagem Lua. Foi criada em 1993 por Roberto Lerusalimschy, Luiz Henrique de Figueiredo e Waldemar Celes, professores e pesquisadores da PUC-Rio. É utilizada, por exemplo, no desenvolvimento de games como World of Warcraft e na plataforma Roblox. Quer mais? Você trabalha com Machine Learning (ML)? Então com certeza você já usou, ou ao menos sabe o que o é PyTorch, o biblioteca de ML mantida e utilizada pelo Facebook. Nada mais do que uma versão da biblioteca original, que se chamava Torch. Pra usá-la você precisava escrever seus scripts em Lua que rodavam em cima de um compilador Just-In-Time para a linguagem, o LuaJIT.
Já ouviu falar no paradigma de Programação Orientado a Aspectos (POA)? Pois bem, hoje não é mais tão falado, mas há uns 10 ou 15 anos, chegou a virar hype. Tanto que diversos frameworks passaram a utilizar direta ou indiretamente os princípios de POA. Um dos que existem até hoje, e é largamente utilizado pela comunidade Java, é o Spring Framework. Mas antes que você diga que não se fala mais muito em POA, lembre-se que as linguagens funcionais também tiveram seu momento nas décadas de 60, 70 e até 80, caíram no esquecimento e agora voltaram com tudo. O criador da ideia de POA foi Gregor Kiczales, professor de diversas universidades, que desenvolveu o conceito enquanto atuava no lendário PARC, centro de pesquisa da Xerox. O artigo que introduziu a ideia foi publicado em 1997 em uma conferência que até hoje é muito influente no meio científico, a ECOOP (European Conference on Object-Oriented Programming) com o título: Aspect-oriented programming.
MAS AÍ NÃO VALE! Esse exemplo é de algo desenvolvido no mercado. Olha lá, Xerox!
Você tem uma certa razão, e isso tem relação com o que comentei lá no episódio do Hipsters Podcast. O mercado tem ditado muitas das tendências de tecnologia. Isso ocorre porque as necessidades têm surgido dentro das empresas de ponta. Mas há um detalhe que é pouco comentado sobre as inovações que surgem dentro das grandes empresas de tecnologia. E o que seria isso?
Boa parte das tecnologias novas que surgem no mercado, provavelmente vai ter doutores envolvidos nos times, muitas vezes vários deles. São recrutados pelas empresas, diretamente das universidades onde trabalham como professores e pesquisadores. Ou seja, no fim das contas, a visão científica e acadêmica tá ali, mesmo que não pareça. Isso quer dizer que todas as grandes disrupções em computação só existem em função dos pesquisadores? Com certeza, não!
As inovações costumam surgir em um ambiente em que se misturam pesquisadores e engenheiros, academia e mercado. Os pesquisadores contribuem com suas habilidades de experimentação, empirismo e formalidade científica. Já os engenheiros entram com a experiência em tornar os conceitos, muitas vezes ainda incipientes, em algo que possa ser robusto o suficiente para ser usado em larga escala.
Os países de economia mais avançada já perceberam a importância das duas visões, há muito tempo. Suas grandes empresas multinacionais tiram muito proveito disso, empregando, e algumas vezes até formando, mestres e doutores nos seus quadros de funcionários. Normalmente pagando altos salários.
Por isso, venho defendendo e procurado desmistificar a atuação da academia no mercado e na prática de desenvolvimento de software. Quem tem me acompanhado sabe que tive a experiência de atuar profissionalmente nos dois mundos e vejo valor em ambas as visões. Iniciei minha carreira no mercado, onde atuei por ~7 anos como desenvolvedor, líder técnico e gerente de projetos. Fiz mestrado e doutorado e hoje “estou” acadêmico, mas, quem sabe, pulo de volta para o mercado algum dia.
Sempre estimulo profissionais que atuam no mercado a fazerem esse movimento também. Já escrevi sobre os ganhos disso. Mesmo assim, vale lembrar que enfrentar um mestrado ou doutorado trabalhando como desenvolvedor não é fácil. Não quero enganar ninguém. Vivi isso na pele e conheço vários amigos que também viveram. Mas, é possível, e enquanto não fizermos disso uma prática mais comum, estaremos fadados a somente usar as tecnologias criadas por grandes empresas do exterior e seguir achando que a academia é nossa inimiga e só faz “coisas não aplicadas”.
Aí embaixo tem mais outro tanto de tecnologias e conceitos utilizados no dia a dia de muitos desenvolvedores e que surgiram em ambiente de mercado, mas com forte atuação de pesquisadores e acadêmicos. Algumas provavelmente vão te surpreender!
Com certeza você usa ou já usou algum Banco de Dados Relacional, certo? Oracle, MySQL, PostgreSQL, SQLServer? Pois, seria legal saber que quem criou as bases do modelo relacional, que garantem toda a consistência e robustez desses bancos de dados, foi o pesquisador Edgar Codd, na época trabalhando no departamento de pesquisa da IBM. A ideia foi publicada em 1970, no artigo científico: A Relational Model of Data for Large Shared Databanks.
Mas esse negócio de banco de dados relacionais tá fora de moda, legal mesmo são as bases NoSQL! Então tá! Já usou a Base Key-Value da Amazon, conhecida como Dynamo? Foi liderado por Giuseppe DeCandia, juntamente com vários outros pesquisadores. O artigo científico relatando os detalhes do Dynamo foi publicado em 2007 com o título: Dynamo: amazon’s highly available key-value store.
Ainda no mundo NoSQL e Big Data, você provavelmente já deve ter ouvido falar no BigTable e no MapReduce do Google. Pois então, o desenvolvimento de ambos envolveram vários pesquisadores, liderados por Jeffrey Dean. O artigo científico que abriu o BigTable para a comunidade foi o Bigtable: A Distributed Storage System for Structured Data, publicado em 2006. Já o MapReduce foi publicado em 2004 sob o título MapReduce: Simplified Data Processing on Large Clusters.
Se formos entrar no mundo de Inteligência Artificial e Machine Learning ia ficar ainda mais difícil terminar esse post. Ou seja, a lista, com certeza, é muito mais longa. Por isso, convido amigos e colegas, pesquisadores ou não, a entrarem em contato caso queiram compartilhar algo de seu conhecimento, mas que não tenha sido mencionado aqui. Sempre que possível farei atualizações nesse post com novas informações.
Lembrando mais uma vez que a intenção não é fomentar uma disputa Academia VS Mercado, ao contrário, mostrar que ambos têm a ganhar interagindo e tomando mais conhecimento do que está sendo produzido em cada lado.
Caso o texto tenha sido útil pra você, seria legal se você pudesse compartilhar nas suas redes sociais pra que a comunidade também se beneficie.
No twitter (@brunocartaxo) estou sempre conversando e postando sobre a vida de quem faz mestrado e doutorado, inclusive focando em pessoas que atuam no mercado. Se tiver interesse, me segue lá.
]]>Já listei várias coisas que um profissional do mercado tem a ganhar fazendo um mestrado/doutorado. Também falei sobre como o mercado e a academia são mundos diferentes e por isso apontei o que gostaria de ter entendido antes de entrar nessa de fazer pesquisa.
Mas aí a gente poderia se perguntar…
Será que não tem nada da minha experiência no mercado que seja válido trazer pra essa minha saga científica?
Só tem!
Trabalhar no mercado de desenvolvimento de software e fazer um mestrado/doutorado não é fácil. Além da dedicação é preciso muita adaptação. São mundos bem distintos. Mas pode crer que quem vem do mercado e se mete na academia tem várias vantagens. É só saber usar a experiência aseu favor.
Já falei um bocado sobre os vários ganhos de ter uma experiência de pesquisa acadêmica. Agora vou puxar a sardinha pro mercado. Sei que vou ser superficial e fazer generalizações em vários pontos. Ok, é o preço que se paga ao tentar se comunicar com dois mundos tão diferentes.
MÃO NA MASSA Pessoas que trabalham no mercado são exímios em tirar ideias do papel e torná-las realidade. Costumam meter mais as caras. Se você entende o que se espera de uma pesquisa de mestrado/doutorado é “só” uma questão de executar.
O danado é que normalmente quem vem do mercado demora um pouco pra entender o que se espera dele na academia. Rompendo essa barreira, você tem uma vantagem e tanto sobre seus colegas puramente acadêmicos.
Fonte desconhecida. O tempo da ciência de fato é diferente do tempo do mercado. E tem que ser. Mas quem é puramente da área de pesquisa às vezes sofre de uma certa falta de objetividade. Principalmente quando ainda está no início da carreira acadêmica (aka no mestrado/doutorado). Quem é do mercado normalmente mete logo a mão na massa e faz as coisas acontecerem.
ATITUDE PROFISSIONAL Quem vem do mercado tende a agir de uma forma mais profissional. Pra mim aquilo era um trabalho como qualquer outro. Tinha algo a fazer e precisava entregar no tempo e qualidade esperados usando somente os recursos disponíveis. Não me via como um estudante que espera o professor definir as coisas. Eu era o responsável pelo meu mestrado/doutorado dar certo.
Na academia percebo uma certa postura “estudantil” dos alunos de mestrado/doutorado que nunca tiveram experiência prática. Às vezes falta um pouco de maturidade. É até compreensível. Mas quando você junta isso ao fato de na academia existir uma certa hierarquia velada e uma cultura excessivamente cerimoniosa… daí você tem um terreno fértil pra um comportamento um tanto quanto amedrontado ou subserviente por parte dos alunos.
A vivência de mercado faz com que você não dê muito cabimento a essa rigidez acadêmica. Você até vê todo aquele mise en scene. Mas dá uma de gasparzinho e passa através de tudo aquilo sem se afetar tanto.
Só cuidado pra não errar a mão. Existe uma linha tênue entre usar o olhar do mercado pra não se perder em jogos desnecessários e ser desrespeitoso ou quebrar regras importantes pra o bom funcionamento da academia e da ciência. Sejam regras explícitas ou implícitas, muitas vezes elas tem um motivo de existir e não deveriam ser quebradas.
CAPACIDADE DE PLANEJAMENTO E EXECUÇÃO No meu mestrado/doutorado, tava sempre definindo metas, quebrando atividades, planejando e executando. Todo começo de ano tinha mapeado os locais que queria publicar artigos, datas, temas a serem explorados e potenciais colaboradores. Durante o ano ia ajustando à medida que as coisas iam andando. Pesquisa tem alguns componentes a mais de incerteza que dificilmente há num projeto de software. Há de se adaptar o método de gerenciar o projeto.
Fonte desconhecida. Publiquei muitos artigos em conferências e revistas internacionais bem relevantes da minha área de pesquisa. Artigos publicados são a moeda da academia. Vá para sua defesa com vários artigos de qualidade publicados e tenha a certeza que as coisas serão relativamente calmas. Vá sem nenhum e saiba que o risco do sarrafo ser grande é bem alto.
Não quero entrar no mérito aqui sobre corrida de números de publicação. Se publicar artigo de fato mede um bom pesquisador, ou questões derivadas. Isso é tema pra uma outra conversa, que provavelmente diz muito mais respeito aos colegas acadêmicos.
Sempre tive um bom reconhecimento do meu orientador, de outros professores e dos meus colegas de pesquisa, como alguém que produz muito e com qualidade. Devo um tanto disso aos meus bons anos de desenvolvedor, líder técnico e gerente de projeto no mercado de software. Nos textos anteriores, depois de falar do tanto que quebrei a cara, acho que um pouco de crédito faz bem.
Certa vez, quando tava com um prazo apertado pra submeter um artigo, convidei um amigo pra me ajudar. Cheguei nele com um diagrama de gantt. Tava lá todas as atividades do que era necessário fazer pra fechar a pesquisa, escrever e submeter. Tudo quebrado em microatividades pensando em terceirizar o máximo possível.
O uso do diagrama de gantt é só um exemplo. Não tô muito aí se tá fora de moda. Naquele momento foi útil. Em outras ocasiões já usei princípios de Scrum, Kanban, Brainstorm, Grupo Focal, Issue Trackers e muitas vezes somente o bom e velho Bloco de Notas resolvia que era uma beleza.
Meu amigo tomou um susto. Disse que nunca tinha visto alguém planejar as coisas daquele jeito na academia. Só via aquilo nas aulas de engenharia de software mas achava que ninguém usava. Overplanning e micromanagement é algo normalmente ruim. Mas nosso tempo e recursos eram escassos e o feeling me disse que aquela forma de encarar daria certo. E acabou dando mesmo.
TRABALHO EM EQUIPE Pra ser justo, o negócio só deu certo porque eu sabia que meu amigo é um puta pesquisador. Até isso devo à minha vivência no mercado. Montar equipes boas sempre fez parte da ordem do dia. Já na academia é comum nem se pensar em envolver outras pessoas. Seja pelo hábito de trabalhar sozinho, seja porque às vezes se tem um postura de querer o protagonismo para si.
Sempre que vou começar uma pesquisa, a primeira coisa que penso é: quem posso convidar pra colaborar? Conhecido ou desconhecido. Não tenho receio de convidar desconhecidos. Se não for uma boa experiência trabalhar com aquela pessoa é só não chamar na próxima. Faz parte. Já conheci pessoas fantásticas dessa forma. Até hoje são excelentes parceiros de pesquisa e alguns até viram bons amigos.
CONHECIMENTO DE PONTA Na computação existem algumas áreas que a academia tende a estar à frente do mercado. Atualmente assuntos relacionados à Inteligência Artificial e Ciência de Dados são bons exemplos. Grandes empresas como Google, Facebook, Amazon, etc estão sempre caçando talentos dentro das universidades. Sejam professores ou alunos de mestrado/doutorado.
Já em outras áreas, o mercado que dita as tendências. Em engenharia de software atualmente funciona assim. A academia acompanha o movimento do mercado com um pouco de atraso. Via de regra, a intenção não é inventar algo novo. A ideia é se aprofundar em algum fenômeno que não é bem compreendido pra tentar explicá-lo com base científica. Outra abordagem é investigar se certas modas que o mercado adora criar de tempos em tempos tem de fato a eficácia/eficiência que costuma-se alardear, também através de evidências científicas.
Se a pesquisa do seu mestrado/doutorado se encaixa no segundo tipo, você tem a grande vantagem de trazer conhecimento de ponta do mercado sobre práticas que a academia ainda nem tá ligada que existe. Daí você pode propor estudar e ser um pioneiro nesse assunto no meio acadêmico. Taí um caso claro de experiência do mercado sendo trazida de maneira quase direta para a academia. Só cuidado pra não cair na cilada de achar que vai abordar essa prática ou técnica da mesma forma que você fazia no mercado. Se fosse assim, pra quê fazer um mestrado/doutorado? Você vai investigar sob um olhar científico, que é bem diferente. Não canso de apontar o texto que discute sobre essa diferença pra evitar frustrações.
Por fim, mais uma vez, é sempre bom lembrar que muito das limitações que mencionei sobre o olhar acadêmico “puro” são generalizações. Posso afirmar sem medo que já me cruzei com pessoas extremamente hábeis no meio científico. Mesmo sem terem qualquer experiência prévia no mercado. Não se enrolam em jogos da academia e tem um olhar muito afiado. Felizmente na minha rede de colaborações estou cheio dessas pessoas. Procuro me cercar delas. Nunca cansarei de exaltar dois dos maiores exemplares dessa espécie. Um foi meu orientador de mestrado e de doutorado (Sérgio Soares), e outro foi co-orientador do meu doutorado (Gustavo Pinto).
No fim das contas a intenção aqui é mostrar as ferramentas que alguém do mercado já tem ao seu dispor e que pode ajudá-lo ao adentrar no mundo acadêmico. Sem dúvida tem margem pra falar de outras coisas. Mas acho que esse já é um bom começo.
Caso esse texto tenha sido útil, seria legal se você pudesse dar alguns “claps” para ajudar a divulgar na comunidade.
No twitter (@brunocartaxo) estou sempre conversando e postando sobre a vida de quem faz mestrado e doutorado, inclusive focando em pessoas que atuam no mercado. Se tiver interesse, me segue lá.
]]>Depois de mostrar que mestrado/doutorado não é exatamente o que muitos de nós esperamos que seja, ficou a questão…
Mas o que ganha então um profissional do mercado ao fazer um mestrado/doutorado?
Este texto é uma tentativa de resposta a essa pergunta. Aproveito também para dar exemplos que mostrem como funciona a dinâmica no meio da pesquisa acadêmica. Assim o profissional do mercado que tiver interesse em entrar nesse mundo já vai se familiarizando com a coisa toda. Lembro que o texto é baseado na minha experiência particular e que SEM DÚVIDA MINHA EXPERIÊNCIA NO MERCADO TAMBÉM TROUXE MUITOS GANHOS QUANDO DECIDI SEGUIR UMA CARREIRA ACADÊMICA. De maneira alguma os pontos que levanto são exaustivos. Além do mais, todas as aptidões e experiências que vou apresentar aqui poderiam ter sido desenvolvidas e vividas em vários outros ambientes que não a academia. Mas é difícil que você passe por um mestrado/doutorado e não desenvolva essas aptidões ou tenha essas experiências. AÍ VÃO ELAS…
AMPLIAR AS POSSIBILIDADES DE AÇÃO Nas decisões de carreira sempre procuro privilegiar caminhos que ampliem minhas possibilidades de ação. Vale o velho ditado de não colocar todos os ovos em uma única cesta. A partir do momento que você tem um mestrado/doutorado você amplia consideravelmente seu campo de ação.
Fonte desconhecida. Um acréscimo óbvio é a possibilidade de atuar como professor, seja em faculdades/universidades públicas ou privadas. Temos aí uma oportunidade de ter mais de uma fonte de renda. Houve um período em que trabalhei como engenheiro de software em um projeto que dava sinais de que iria terminar. Notando isso, decidi procurar outro emprego. Como já não era um iniciante, tinha que ser mais seletivo, mas ao mesmo tempo sabendo que a qualquer momento o projeto poderia encerrar e eu ficaria sem renda. Nesse época eu já tinha concluído meu mestrado e atuava também como professor em faculdade privada durante a noite. Isso (e uma reserva de emergência bem planejada) me deu tranquilidade para fazer essa transição sem aperreio. Se uma cesta caísse eu ainda tinha outra.
Outra possibilidade, menos óbvia, é a atuação como pesquisador, seja em instituições públicas ou privadas, no Brasil ou no exterior. Apesar de ainda serem raras as vagas para pesquisadores em empresas no Brasil, elas existem. É só saber procurar. Mas quando se olha para as possibilidades no exterior isso se amplia muito. Pra quem é da área de computação sabe que todas as grandes multinacionais tem demanda para doutores nos seus departamentos de P&D. Tenho alguns vários amigos que são contratados na Microsoft Research, Amazon, Facebook, etc. Eles atuam como pesquisadores empresariais. O requisito é ter doutorado! Então se você pensa em sair do Brasil e tem não só a possibilidade de aplicar para empregos no mercado de desenvolvimento de software (engenheiro, gerente, etc), mas também para vagas de pesquisador, isso facilita bastante as coisas.
Uma outra opção ainda menos óbvia é a diversificação em outras áreas de conhecimento. Em outras palavras, fazer pesquisa tendo a computação aplicada à outras áreas, como por exemplo, educação, biologia, medicina, matemática, física, etc. Conheço pessoas que atualmente são coringas. Conseguem extrapolar o mercado de software e atuar em várias outras áreas.
Um exemplo é o grande Jones Albuquerque, que antes de tudo é uma figura ímpar. Ele é a representação arquetípica de um cientista. Se não existisse ciência no mundo, ele ainda sim seria um cientista (palestra de Jones no TEDx). Ele tem toda sua formação em computação. Graduação, mestrado e doutorado. Mas tem uma base muito forte em matemática e há um bom tempo tem usado todo conhecimento dessas duas áreas pra resolver problemas da saúde e da biologia. Além de ser professor de computação, ele atualmente atua como pesquisador convidado em centros de saúde. Mas pra quem pensa que ele é um simples acadêmico, é bom saber que ele também é sócio e co-fundador de uma startup na área de saúde. Ele inclusive lidera uma das mais robustas iniciativas de análise epidemiológica do COVID-19 no Brasil, a IRRD.“THIS IS REAL SCIENCE!” como ele costuma falar. Alguém com essa atuação e formação ampla é bem vindo em qualquer empresa/universidade não só na área de computação, mas também de saúde e matemática.
APRENDER A LIDAR COM A REJEIÇÃO Acho que tirando as pessoas que trilham um caminho empreendedor, dificilmente têm-se um carreira tão cheia de rejeições jogadas constantemente na sua cara como na academia. Quando se é um aspirante a pesquisador (quem ainda está fazendo mestrado/doutorado) aí que essa realidade bate à porta com força.
Coisa mais comum é você trabalhar meses e até anos em uma pesquisa e quando tenta publicá-la você recebe um reject atrás do outro.
Fonte desconhecida. Fernando Castor, um pesquisador experiente e de alto nível na área de computação aqui no Brasil, relata sua saga de quase quatro anos e quatro rejeições em conferências e revistas científicas para publicar uma pesquisa. Repare que não estamos falando de um iniciante. Isso é a duração de um doutorado inteiro. Pra conseguir publicar um artigo!
Tenho incontáveis pesquisas que tentei publicar em conferências e revistas e recebi seguidas rejeições. Algumas eu segui tentando e melhorando mas não teve jeito. Em algum momento tive que aceitar a derrota e deixar de lado. Faz parte. Outras eu consegui pegar cada uma das rejeições e melhorar até ficarem num ponto irrefutável. Consegui tapar todos os buracos. Como diz já diz o título de um livro de Cal Newport, “So good they can’t ignore you”.
Desde o começo do meu doutorado, até o terceiro ano, sempre que apresentava algo em conferências eu levava uma ou outra invertida de algum pesquisador que estava assistindo minha apresentação. Ou recebia alguma pergunta que não sabia responder. No quarto e último ano, quando consegui consolidar bem a pesquisa depois de apanhar tanto, fui apresentar meus resultados pela última vez em uma conferência na Nova Zelândia. Vários dos maiores pesquisadores do mundo na minha área de pesquisa assistindo minha apresentação. Em seguida, uma sequência de perguntas desses super pesquisadores. Respondi uma a uma sem nem piscar. Já tinha apanhado tanto que quando eles começavam a pergunta eu já sabia onde ia chegar e já tinha a resposta na cabeça. No intervalo da sessão eis que um pesquisador daqueles de nível entidade, que o mundo todo lê os livros dele como referência, veio conversar comigo. Elogiou a apresentação e a pesquisa e propôs uma parceria. FUCK YEAH!
Posso afirmar sem sombra de dúvida que minha trajetória acadêmica me proporcionou muito mais fracassos do que minha carreira no mercado. Criar uma carapaça pra suportar isso foi algo que minha carreira no mercado não me preparou nem de perto. Essa experiência pode ser muito útil no mercado pra quem deseja tocar iniciativas mais fora das convencionais. No decorrer do texto vou elaborando algumas dessas possíveis iniciativas.
APRENDER A SEGUIR POR TRILHAS INCERTAS Essa é uma experiência que é fortemente relacionada às rejeições, mas acho que tem alguns aspectos sutis que valem ser explorados.
Atuar com desenvolvimento de software é algo muito imediatista. Você escreve um código, bota pra compilar e já sabe se tem algum erro. Desenvolve um sistema, bota pra rodar e já começam a aparecer os problemas quase que instantaneamente. O ciclo de maturação de quem trabalha com desenvolvimento de software, e do próprio software em si, é muito curto.
Poucas coisas na vida e na nossa carreira profissional tem essa característica.
Conseguir manter energia constante enquanto se trilha um caminho incerto é algo que exige um preparo e tanto. Principalmente quando se caminha no escuro por anos sem nenhum, ou poucos sinais, de que aquilo vai dar certo. Imagina só passar quatro anos, muitas vezes até mais que isso, trabalhando em algo sem saber se vai render alguma coisa. Sabendo inclusive que se não resultar em nada você “perdeu” esses anos. Isso é um doutorado!
Fonte desconhecida. Aí vai um breve relato desse tipo de situação…
Ingressei no meu doutorado com um tema pré-definido. Passei um ano e meio explorando esse tema sem muito sucesso. Perto do fim do segundo ano resolvi mudar totalmente de tema e joguei todas as fichas em uma nova direção. Passei uns três meses trabalhando de 10 a 12 horas por dia. De domingo à domingo, somente nisso. Depois de colher todos os resultados escrevi um artigo e submeti para um conferência internacional das mais relevantes na minha área de pesquisa.
Enquanto esperava o resultado decidi investigar algo que me veio à mente enquanto estava fazendo a pesquisa principal. Para mim uma contribuição pequena. Mas como estava à mão e tinha um prazo logo a frente de uma outra conferência, decidi investir um pouco de tempo nisso. Toquei essa pesquisa em menos de um mês e com bem menos intensidade. Eis que nesse meio tempo saiu o resultado do artigo principal que botei tanto esforço.
Rejeitado!
Peguei as revisões, juntei os cacos, fiz as melhorias e submeti os dois papers para essa outra conferência. O da minha pesquisa principal que tenha sido rejeitado, e esse outro “bestinha”. Alguns meses depois saiu resultado.
O paper principal foi rejeitado (pela segunda vez) e o secundário foi aceito, e muito bem aceito.
Fui apresentar ele na Espanha e recebi muitos retornos positivos. Muita gente interessada. Daí em diante segui em duas linhas paralelamente. Um era da pesquisa que eu julgava ser minha principal. Peguei as revisões e trabalhei em cima. E o outro caminho era o da pesquisa “bestinha”. Comecei a tocar pesquisas que eram desdobramento naturais dela.
Pra minha surpresa esse segundo caminho se provou muito mais frutífero, dia após dia.
Não que tenha sido um mar de rosas, porque pesquisa nunca é fácil. Mas nos próximos dois anos, até o final do meu doutorado, publiquei mais cinco artigos nessa linha. Todos em conferências e revistas internacionais de alto impacto na área. Fui apresentar um artigo na Irlanda; no ano seguinte dois artigos na Argentina e um no Canadá; e no último ano um artigo de revista e um que já mencionei antes, na Nova Zelândia.
Enquanto isso o meu artigo inicial da linha principal seguia sendo rejeitado, ano após ano, submissão após submissão.
Ao todo foram cinco rejeições, se não esqueci alguma delas. Durante três anos. Dá pra imaginar que em algum momento essa deixou de ser minha pesquisa principal. Enquanto isso, aquele outro caminho improvável que eu não pus muita fé se mostrou cada vez mais real. Daí tive que aceitar ele como minha pesquisa. ME RENDI À REALIDADE.
Dois anos depois de defender meu doutorado o tema ainda segue rendendo frutos. Várias colaborações com pesquisadores/instituições de mais de cinco nacionalidades. Mais artigos publicados. Alunos de mestrado e doutorado que agora eu oriento ainda seguem nessa linha. E no ano que escrevo este texto, 2020, fui convidado a escrever um capítulo de um livro junto com os maiores especialistas do mundo na área.
A história é longa, mas quero acreditar que mostra bem o ganho que se tem ao trilhar caminhos incertos. Aprender a insistir, desistir e eventualmente abraçar as oportunidades quando e como elas aparecem.
É uma experiência que é possível trazer para sua carreira no mercado pra te dar força pra tentar tocar iniciativas menos convencionais. Por exemplo, você que já é um desenvolvedor ou gerente bem estabelecido pode tentar fazer com que sua voz seja ouvida na sua comunidade.
Como virar um comunicador e referência dentro da sua comunidade?
Esse é um caminho mais incerto do que seguir a trilha de desenvolvedor tradicional. De empresa em empresa. Mas de repente pode te dar um retorno pessoal e profissional imenso. A experiência acadêmica, indiretamente, e de maneira pouco óbvia, poderia te ajudar a encarar iniciativas desse tipo. Mais incertas. E DAÍ VOCÊ TERIA MAIS UMA CESTA.
APRENDER A ESCREVER Esqueça esse negócio de fazer ciência. Pesquisar na academia é tudo sobre escrever.
Tirando o claro exagero (obviamente fazer ciência é sim o objetivo principal da pesquisa acadêmica), escrever é muito importante numa trajetória de pesquisa. O dia de a dia de quem pesquisa é ter ideias, colocar essas ideias à prova, analisar os resultados, e escrevê-los para divulgá-los. Escrever, escrever e escrever. Seguramente escrevi algo entre 20 e 30 artigos dentro do período de seis anos do meu mestrado e doutorado. Isso dá uma média de 3 a 5 artigos por ano. Como você já se sabe, nem todos foram publicados. Provavelmente a maior parte deles.
Fonte desconhecida. E qual a utilidade disso para a minha carreira no mercado?
Quando estamos no início da nossa carreira, tudo é novo e estamos sempre aprendendo algo. O mais importante é entender como as coisas funcionam e dominar os aspectos técnicos da nossa profissão. No caso de quem trabalha com desenvolvimento de software, é dominar linguagens de programação, frameworks, padrões de projeto, arquitetura, algoritmos, processos, etc.
Depois de alguns anos de experiência atingimos um platô. Não é fácil seguir crescendo verticalmente.
Pra seguir se desenvolvendo e colhendo melhores resultados a gente vê que o desafio maior é a comunicação. Saber se comunicar e se relacionar com nossos pares e nossa comunidade é o único caminho. Daí vem a importância da escrita.
Escrita, provavelmente, é a melhor forma de estruturar ideias. Você pode escrever textos para compartilhar com sua equipe; internamente para sua empresa; ou até mesmo publicamente para sua comunidade. Isso pode ajudar a alavancar sua carreia. De repente você vira referência na sua empresa e até na sua comunidade ao levar essa atividade a sério.
Escrita também pode ser suporte para outros tipos de comunicação.
Seja por voz (ex. podcasts), por vídeo (ex. youtube), ou ao vivo (ex. palestras). No HiDev Podcast tenho que estruturar um mínimo de roteiro escrito para que ele flua de maneira aceitável. Tenho também outro exemplo recente. Depois de terminar o doutorado fui convidado pela OAB (a Ordem dos Advogados do Brasil) para dar uma palestra no evento nacional de propriedade intelectual. Tinha que falar sobre tecnologias que poderiam mudar a prática jurídica. Pra fazer a palestra li bastante coisa sobre o tema e depois senti a necessidade de decantar o que aprendi escrevendo. Daí surgiu o texto: O futuro (e o presente) da prática jurídica em tempos de inteligência artificial. Que depois virou uma apresentação e que por fim virou uma palestra. Fiquei bem satisfeito com o retorno que recebi dos advogados que estavam no evento. Consegui me comunicar com outra comunidade!
Mesa composta por advogados da área de propriedade intelectual que atuam em Brasília, Curitiba, Rio de Janeiro e Recife… e um outsider. Encontre o outsider. Antes de fazer meu mestrado eu ficava impressionado como alguém poderia escrever cem ou duzentas páginas sobre algo. Depois que você passa pelo processo vê que é tudo muito natural. Hoje em dia escrever é uma atividade que incorporei de maneira intuitiva no meu processo criativo. Não tem como fugir.
Mas escrever todo mundo sabe. Escrever bem e de maneira sistemática, isso pouca gente domina.
A academia te força a ter esse tipo de experiência. Aqui eu escrevo de maneira mais livre. Mas com toda certeza minha prática exaustiva de escrita durante meu mestrado/doutorado foram fundamentais para destravar e ganhar fluência na escrita.
Você pode pensar que escrita científica é maçante e sem graça, e você tem uma certa razão.
Mas sem sombra de dúvida é um treino e tanto para você estruturar suas ideias. Além do mais, pra ser justo, tenho achado a escrita científica cada vez mais objetiva e sem firula. Ao menos na área de computação. Se você submete um artigo pra uma conferência ou revista científica de qualidade e começa com aquela retórica digna de gerador de lero-lero, é certeza que seu artigo será rejeitado. Mas claro, há certos aspectos das escrita científica que precisam permanecer para garantir o rigor do que se reporta. Afinal, cada tipo de escrita tem seu objetivo.
DESENVOLVER O PENSAMENTO CIENTÍFICO Quem trabalha com desenvolvimento de software tem um certo privilégio porque de algum modo teve que desenvolver o raciocínio algorítmico. Tem a possibilidade de usá-lo de maneira ampla na sua carreira/vida. Programar nos ensina como olhar para problemas grandes e complexos e quebrá-los em problemas menores e tratáveis. Desenvolvedores de software são exímios solucionadores de problemas. Um mestrado/doutorado coloca uma camada extra por cima dessa aptidão, permitindo um nível a mais de sofisticação do pensamento. O tal pensamento científico.
O raciocínio algorítmico se preocupa com o “COMO” e o científico com o PORQUÊ.
Pesquisar é aprender a fazer perguntas. É dar um passo pra trás nas nossas convicções e se perguntar… Mas porque isso ocorre? E se eu fizer de outro forma, o que mudaria?
Fonte desconhecida. Fazer as perguntas certas é muito mais importante do que simplesmente saber responder perguntas já feitas. Principalmente quando elas não são boas. O raciocínio algorítmico nos torna excelentes executores. Excelentes respondedores de perguntas. Já o pensamento científico nos leva a explorar o campo das perguntas. Aprender a fazer as perguntas certas. Que se respondidas nos levarão aos melhores resultados.
Por que eu deveria seguir o plano de carreira da minha empresa? E se trocando de emprego, com outra cultura, mais alinhada aos meus objetivos pessoais, eu conseguisse obter melhores resultados? Mas e se o problema for eu? Por que eu quebro a cara sempre em certas coisas? E se eu fizesse diferente aqui, ou acolá? As perguntas são eternas. Algumas boas, outras nem tanto. Umas serão respondidas, outras seguirão em aberto. Esperando que alguém as responda.
REDE DE PARCEIROS GLOBAL O meio de pesquisa é mais global e dinâmico que o do mercado. Isso tem um efeito colateral positivo, que é a criação de uma rede de parceiros mais ampla e diversa quando atuamos na academia.
Por mais que a gente mude de empresa e projeto, por mais que tenhamos trabalhado com colegas ou clientes estrangeiros, ainda assim tendemos a ter uma rede de contatos mais restritiva no mercado.
Por que isso?
Porque é muito comum, passarmos um ano, muitas vez mais que isso em um mesmo projeto de software. Convivendo com os mesmo colegas. Em contato com os mesmos clientes. As mesmas pessoas.
Quem atua como pesquisador, principalmente depois de terminar o doutorado, costuma tocar várias pesquisas simultaneamente. Cada uma dessas pesquisas envolve diversas pessoas do seu grupo de pesquisa, mas também pessoas de fora dele. Muitas delas inclusive são pesquisadores do exterior que investigam temas correlatos aos seus e acabam tornando-se seus colaboradores. Os contatos são mais pontuais e focados.
É assustador quando paro para pensar quantos pesquisadores já trabalhei direta ou indiretamente até hoje
De cabeça consigo enumerar facilmente pesquisadores de mais de 15 nacionalidades de várias instituições de pesquisa. E toda esse interação pode criar laços bem fortes. Principalmente quando você faz pesquisa e publica artigos em parceria com essas pessoas.
Tudo isso acaba te abrindo as portas para o mundo e te tornando um cidadão global de fato.
Fonte desconhecida. Antes de entrar no meio acadêmico só havia feito uma viagem para o exterior. Só conhecia um único país além do Brasil. Contando os carimbos e vistos no meu passaporte, vejo que já estive em 17 países em 5 continentes. Tudo devido às minhas pesquisas. Depois de passar por tantas imigrações, ter que resolver tantas questões de viagem, de visto, de acomodação, de aprender a me locomover nas várias cidades, interagir com as pessoas nas ruas, etc … Isso me tornou muito mais aberto a ver que o que fazemos no Brasil, quando bem feito, é de nível global e que não tem grandes dificuldades de ir trabalhar/morar fora. Se essa for sua vontade.
DOMÍNIO DO INGLÊS Um requisito básico para que a rede de parceiros de um pesquisador seja ampla e global é o domínio do inglês. Meu inglês enquanto só atuava no mercado era aquele feijão com arroz. Conseguia ler texto técnico com facilidade, escrever emails curtos e era bem limitado em conversação.
Já trabalhei em diversos projetos com clientes estrangeiros, mas nada durante a minha atuação no mercado fez meu inglês ter um upgrade tão grande quanto minha vivência acadêmica.
Estou longe de ter um inglês perfeito, mas atualmente sou bem destravado. Leio tudo em inglês sem nem pensar. De textos técnicos a livros de ficção e não-ficção bem longos (mais de 600 páginas) sem nenhuma relação com computação. Escrevo com facilidade. Foram mais de 30 artigos escritos. Consumo videos e filmes em inglês sem legenda sem perceber que estão em inglês. Converso com tranquilidade com pessoas e já cheguei a fazer apresentação em inglês para platéias com mais de 100 pesquisadores. Considerando que eram platéias naturalmente críticas, isso eleva ainda mais o nível de preparo para fazer essas apresentações. Não sei precisar ao certo como se deu toda essa evolução, mas quando olho para o antes e o depois, a diferença é gritante.
A necessidade foi ditando o meu desenvolvimento no inglês.
Quando trabalhamos no mercado de desenvolvimento de software no Brasil é possível evitar muitos contatos diretos com clientes estrangeiros e deixar que outras pessoas da nossa equipe resolvam isso. Na academia não tem como correr. A leitura e a escrita em inglês são diárias e não dá pra terceirizar. Ou vai ou racha. Isso sem falar das apresentações em conferências e conversas com pesquisadores que só entendem inglês e são a única saída para destravar algum aspeto da sua pesquisa.
STATUS Esse é sem dúvida o menos importante dos itens anteriores. É também um tópico delicado. O risco de escorregar e ser mal interpretado é grande. Mas tentar é preciso.
Ter um doutorado te dá um status na sociedade. Te torna uma referência, alguém que deve ser ouvido.
Fonte desconhecida. Os doutores deixaram de ser figuras tão raras com o aumento de pessoas seguindo a carreira acadêmica. Mas ainda assim o título tem um apelo que sem dúvida pode te abrir portas tanto no mercado como na interação com a sociedade de maneira geral.
O problema do status é você se perder nele.
O ideal é deixar que as pessoas reconheçam seu valor. Entregue resultado e deixe que o reconhecimento chegue. Não leve muito a sério essa coisa de título de mestrado/doutorado. O melhor doutor é aquele que você convive e não faz a menor ideia que ele é doutor. Procuro me cercar deles. Meu orientador (Sérgio Soares) e co-orientador (Gustavo Pinto) de doutorado são grandes exemplos disso. Se você conversa na rua nem imagina. Mas ambos tem feitos notáveis não só na academia como na sociedade de maneira geral. Em nível nacional e internacional.
Posso afirmar que meus alguns bons anos de experiência no mercado tornaram minha tragetória como pesquisador muito melhor e mais fácil. Então escrevi um outro texto pra responder a pergunta aí de baixo.
Como usar sua experiência no mercado a seu favor quando for fazer um mestrado/doutorado em computação?
No twitter (@brunocartaxo) estou sempre conversando e postando coisas relacionadas à vida de quem faz mestrado e doutorado, inclusive focando em pessoas que atuam no mercado.
]]>Primeiramente, é bom deixar claro que ninguém é obrigado a fazer mestrado ou doutorado para ser bem sucedido na carreira. Portanto, não há nenhum demérito em profissionais que optam por não ter essa experiência. Dito isso, acredito que profissionais do mercado que desenvolvem competências acadêmicas e de pesquisa, sem sombra de dúvida, ampliam e muito sua visão e capacidade de ação. A recíproca também é verdadeira. Pesquisadores acadêmicos que tiverem uma experiência de mercado minimamente razoável certamente tem uma perspectiva diferenciada.
Voltando à conversa com o meu convidado… Ele chegou a começar um mestrado mas acabou abandonando.
Alguns dos motivos para o abandono foi que ele não queria fazer um mestrado “só por fazer”, “só pra ter o título”. Ele gostaria de fazer um trabalho que tivesse orgulho; que as pessoas usassem; que inspirasse pesquisas futuras; ou que produtos viessem a ser feitos usando a pesquisa dele.
EM RESUMO, ele queria que o mestrado tivesse impacto. Quando ele viu que isso não ia se concretizar, acabou se frustrando e abandonando. Apesar de terem havido outras questões pessoais também.
Esse tipo de relato é algo que vejo se repetir tanto que acho que a gente pode descolar totalmente do meu convidado. Eu inclusive passei por isso. Tenho mestrado e doutorado concluídos e atualmente sou professor/pesquisador. Mas antes de entrar no mundo acadêmico eu vim do mercado. Atuei como desenvolvedor, líder técnico e gerente de projetos por quase oito anos em empresas de software.
Sendo assim, vou esmiuçar alguns pontos que considero importantes para entender esse tipo de frustração e espero ajudar profissionais do mercado que decidirem se aventurar no meio da pesquisa acadêmica.
Para um desenvolvedor de software, duas coisas são importantes: o produto final e a forma como se constrói o software. Se eu crio um novo produto amplamente utilizado… Eu obtive êxito no mercado. Se eu, como desenvolvedor, aprendo muito aplicando as mais avançadas técnicas de desenvolvimento de software ao construir esse novo produto… Eu obtive êxito no mercado. Claro que cada um pode ter seus próprio critérios do que é sucesso na carreira, mas vou tentar simplificar as coisas aqui.
Nenhum desses critérios são relevantes no meio de pesquisa acadêmica.
Uma pesquisa está preocupada em evoluir o conhecimento atual sobre algum tópico de interesse. Um produto desenvolvido e as técnicas utilizadas para desenvolvê-lo não preenchem esse requisito. Você pode até ficar bilionário como empreendedor, ou virar um engenheiro de software respeitado. Mas isso não constitui contribuição relevante para o corpo de conhecimento de pesquisa.
Para o mundo da ciência, faço algo relevante quando crio algum conceito, método, ou técnica nova que melhora algum aspecto do desenvolvimento de software. Ou quando consigo explicar a dinâmica de algum fenômeno que antes era pouco compreendido.
Imagina que desenvolvi uma técnica que reduz a quantidade de erros introduzidos ao fazer merge de código. Se eu consigo descrever essa técnica formalmente e avaliar se ela de fato entrega a melhora prometida utilizando métodos científicos válidos, então tenho uma pesquisa.
Agora imagina que consegui criar um modelo que descreve de maneira bem estruturada o fenômeno da dificuldade que desenvolvedores enfrentam ao tentar se inserir em projetos open-source. Para criar esse modelo utilizei diversos métodos científicos rigorosos que permitem checar as minhas conclusões. Aqui, também tenho uma pesquisa.
Só vim a entender a diferença entre esses dois mundos quebrando a cara. Ta aí uma das portas na cara que tomei…
No começo do meu mestrado desenvolvi uma ferramenta de software para facilitar uma atividade repetitiva que alguns pesquisadores do meu grupo faziam. Eu acabava de vir do mercado, já tinha alguns bons anos de experiência. Projetei a ferramenta com uma arquitetura escalável e extensível, utilizei vários padrões de projeto, apliquei diversas boas práticas de programação, utilizei trocentos frameworks da moda e implementei até testes unitários e testes de carga. No final a ferramenta ficou realmente robusta, com uma qualidade inclusive muito acima do que normalmente se vê em ferramentas desenvolvidas por acadêmicos.
Escrevi um artigo, submeti para um veículo de divulgação científica descrevendo todas essas fantásticas decisões de projeto e toda aquela apresentação de encher o olho de qualquer desenvolvedor.
ARTIGO REJEITADO. Motivo?
TLDR; “Não vimos nenhuma contribuição relevante”
Decido então apresentar a ferramenta num encontro interno do departamento da universidade que fazia mestrado. Depois de fazer minha apresentação de desenvolvedor orgulhoso vem a primeira pergunta de um dos grandes professores…
QUAL A CONTRIBUIÇÃO? Isso é só um trabalho de engenharia. CADÊ A PESQUISA?
Não quero entrar no mérito aqui sobre pesquisadores/acadêmicos que têm dificuldade de entender a importância de se conectar com o “mundo real”. Por dois motivos. Primeiro, porque isso é outra discussão, que já cheguei a escrever sobre. Segundo, porque hoje vejo que esse pesquisador estava certo em sua crítica e me salvou de passar por uma fogueira.
Agora vamos para outra situação que vejo muito acontecer, ainda relacionado à falta de compreensão do que é relevante para o mundo da pesquisa. Alguém do mercado que está querendo fazer um mestrado/doutorado vai conversar com um possível orientador dizendo algo como “quero que minha pesquisa tenha programação”.
EU TAMBÉM FIZ ISSO… CAÍ EM TODAS
Antes de mais nada, SIM, é possível programar durante um mestrado/doutorado em computação. Mas não será do jeito que se programa no mercado. A programação é um mero instrumento para realizar alguma atividade da sua pesquisa. Ninguém está nem aí se o código está organizado, se o sistema é escalável, se tem muito bug ou não. Provavelmente você inclusive vai programar sozinho. Ninguém liga se você usa controle de versão (apesar de, nesse caso, acho ser prudente usar). A atividade de desenvolver software é totalmente secundária.
Se você quer evoluir suas habilidades como desenvolvedor de software, esse não é um bom lugar. Claro que sempre é possível aprender algo útil, mas não é esse o intuito. Mais uma vez, seu foco é a contribuição científica. Não um produto de software acabado.
Quando você entende que o que importa para academia/pesquisa é diferente do que importa para o mercado, o próximo passo é fazer a seguinte pergunta…
Quem não tem vivência de pesquisa, muitas vezes imagina que o doutorado é o fim da trajetória acadêmica. Mas quem está inserido no ambiente acadêmico sabe que na realidade é exatamente o oposto. A conclusão do doutorado é o começo da carreira acadêmica.
Situação semelhante ocorre no mundo das artes marciais. Quem está de fora acha que ao tirar a faixa preta chega-se ao topo, quando na realidade é só o começo. Se você olhar atentamente verá que todos os grandes campeões de artes marciais só ficaram famosos depois que já tinham tirado a faixa preta. Em competições, ninguém liga muito para as lutas das faixas mais baixas. No máximo serve para observar quem tem potencial de virar um grande campeão depois de tirar a faixa preta no futuro.
Ou seja, não é bom criar muitas expectativas enquanto estiver fazendo seu mestrado/doutorado.
Pela sua própria falta de maturidade como pesquisador, melhor enxergar o mestrado/doutorado como um treinamento para virar um pesquisador. Depois que você “tira” o seu doutorado, aí sim vai começar produzir pesquisas de mais alto impacto.
Também não ajuda enxergar o mestrado/doutorado como continuidade da graduação. São dois mundos muito diferentes, apesar de coexistirem dentro do mesmo ambiente, a universidade. A graduação em computação te prepara para ter as bases do que é a computação e eventualmente começar a atuar com desenvolvimento de software. Já o mestrado/doutorado te prepara para ser um pesquisador.
Quando olho os projetos de software que fiz nas disciplinas da minha graduação tenho um misto de orgulho e vergonha. Orgulho porque sei o sangue que dei e como corria atrás de fazer da melhor forma possível. Vergonha porque depois de ter uma razoável experiência no mercado fica visível como o código (e todo o resto) que eu fazia era tosco. Nada mais natural.
Com o mestrado/doutorado é igual. Quando leio minha tese de doutorado, e principalmente minha dissertação de mestrado, vejo quão tosco era como pesquisador. Mesmo me esforçado tanto pra fazer tudo da melhor forma possível.
Sendo assim, DEIXA EU TE CONTAR UM SEGREDO.Salvo alguma exceção muito fora da curva, ninguém liga muito pra o que você faz no seu mestrado/doutorado. Não há como esperar algo excepcional, você só está aprendendo a ser um pesquisador. Agora posso inclusive falar isso da perspectiva de quem não só fez um mestrado e um doutorado, mas também orienta e orientou alunos de mestrado e doutorado.
COM ISSO NÃO QUERO, DE FORMA ALGUMA, DIZER QUE MESTRADO/DOUTORADO É BRINCADEIRA.
É coisa séria e exige MUITO de qualquer um. Se você não aprende a ser um pesquisador nesse período, dificilmente aprenderá depois. Vale lembrar que as competições das faixas abaixo da preta servem para saber quem está apto a ser um faixa preta e mais ainda, quem tem potencial de virar um BOM FAIXA PRETA. Assim como durante a graduação é possível saber quem tem potencial de ser um bom profissional.
Pra fechar, acho que se colocar na posição de aprendiz e MANTER A MENTE DE PRINCIPIANTE, como prega Shunryu Suzuki no livro a href=”https://www.goodreads.com/book/show/402843.Zen_Mind_Beginner_s_Mind” target=”_blank”>Zen Mind, Beginner’s Mind</a>uda muito, mas não é fácil. Principalmente depois de já ter se estabelecido como desenvolvedor experiente. Entrar na academia é como virar estagiário novamente. Imagina só, eu que já estive a frente de até 3 ou 4 equipes de software simultaneamente, que liderei times com mais de uma dezena de desenvolvedores, que era referência nesses projetos e nas empresas que trabalhei, me ver na posição de estagiário da ciência. Nas conferências e no meio de pesquisa minha voz não tinha nenhuma relevância. Nada fácil.
Daí lembro que abri esse post mostrando que normalmente os profissionais do mercado entram em um mestrado/doutorado achando que vão revolucionar mundo com sua pesquisa. Ou seja, ou realinha-se as expectativas, ou temos uma fórmula para a frustração. E isso tudo que falei não é pra desencorajar ninguém. Muito pelo contrário. É pra mostrar que são mundos com algumas interseções, mas diferentes. Até porque se fossem iguais, qual o sentido em fazer um mestrado ou doutorado? Se fosse uma mera continuidade do que você já faz no mercado.
Depois de tudo isso, dá pra ver que o esforço de fazer um mestrado ou doutorado é bem grande. Enão, você pode se perguntar se vale a pena. Por isso escrevi um texto pra responder a seguinte pergunta…
Caso o texto tenha sido útil pra você, seria legal se você pudesse compartilhar nas suas redes sociais pra que a comunidade também se beneficie.
No twitter (@brunocartaxo) estou sempre conversando e postando sobre a vida de quem faz mestrado e doutorado, inclusive focando em pessoas que atuam no mercado. Se tiver interesse, me segue lá.
]]>Por esses dias esbarrei em um tweet de um cientista dizendo que Átila Iamarino é um pesquisador sem importância. Apenas um divulgador científico.
Pra quem estava em Marte, Átila, doutor em biologia, tem sido um dos maiores influenciadores digitais brasileiros a fornecer informações baseadas em fontes científicas sobre o COVID-19.
Omiti o autor do tweet porque não importa o mensageiro, mas sim a mensagem, e essa é uma mensagem/visão que já me deparei diversas vezes nos meus, não tantos, mas já alguns anos de vida acadêmica.
Vejo esse tipo de leitura normalmente em pesquisadores com POUCA MATURIDADE. Me chama a atenção vê-la em pesquisadores mais experientes. Isso normalmente ocorre com aqueles que tiveram uma formação estritamente acadêmica. Sem nenhum contato com outras atividades profissionais. Mas claro, isso não é regra. Quero crer que seja exceção.
A baliza de qualidade profissional de pesquisadores com esse tipo de visão é ter muitos artigos publicados nos meios de maior impacto científico internacional. Pessoas com essa visão não enxergam que para viabilizar pesquisas é preciso haver pessoas que ESTABELEÇAM PONTES com os mais diversos setores da sociedade.
Para haver bolsas e verba para projetos de pesquisa tem que haver políticas públicas que priorizem a ciência → Para haver políticas públicas é necessário convencer os agentes públicos a destinar verba para esse fim → Para convencer os agentes públicos é preciso que a população reconheça o valor da ciência → Para que esse reconhecimento aconteça é preciso que pessoas façam o trabalho de divulgação científica.
É exatamente isso que Átila e tantos outros fazem excepcionalmente bem. Mas não para por aí. Há muitas outras pontes que precisam ser construídas para garantir que o meio científico possa contribuir de maneira ativa com a sociedade.
É preciso que haja pessoas que estabeleçam pontes com empresas, indústria e todo o setor produtivo. Dessa maneira, as pesquisas podem se transformar em produtos ou serviços concretos, que tragam benefícios diretos à população geral. Isso o professor Sílvio Meira faz como ninguém no Brasil.
Também é necessário dar atenção a uma formação de base na graduação, com foco nas necessidades profissionais, não somente acadêmicas. Infelizmente esse tipo de atividade é muitas vezes negligenciado porque raramente produz pesquisas complexas como a pós-graduação. Isso o professor Adolfo Neto vem fazendo na área de computação. Com certeza há vários outros com um trabalho de base muito bom junto à comunidade de prática profissional.
Também é fundamental estabelecer pontes para definir políticas públicas baseadas em evidências científicas. Só assim teremos uma sociedade mais avançada. Isso o professor Miguel Nicolelis está fazendo muito bem com seu projeto Mandacaru que lidera várias iniciativas junto ao setor público para combate ao COVID-19.
Poderíamos passar horas listando mais e mais pontes que precisam existir para viabilizar a ciência. O que alguém com esse tipo de visão imatura precisa entender é que o mundo é muito mais complexo do que a sua bolha de Lattes recheado. Talvez uma forma de ajudar a enxergar isso seja baixando um pouco mais a bola.
Fonte desconhecida. Recomendaria a leitura do clássico livro The Structure of Scientific Revolutions de Thomas Kuhn. Talvez assim consiga entender que o grosso dos pesquisadores não passam de peões dentro de uma engrenagem muito maior. No momento atual da minha carreira profissional me incluo entre eles.
Mesmo a maioria dos “grandes” pesquisadores com trocentas publicações de impacto estão fazendo nada além do que Kuhn chama de ciência normal. Pequenas contribuições para o corpo científico que dentro de pouco tempo não serão lembradas por ninguém. Isso inclui até mesmo muitos pesquisadores detentores de Prêmio Nobel. A ciência revolucionária de Kuhn, em oposição à normal, quebra e estabelece novos paradigmas científicos. Essas são muito raras. Pouquíssimos de nós desfrutarão do privilégio de liderar tal tipo de iniciativa.
Mas eu não pararia por aí…
Dá pra baixar um pouco mais a bola. Recomendaria o, quase clássico moderno, The Black Swan de Nassim Nicholas Taleb. O mundo da pesquisa científica está localizado dentro do que Taleb chamaria de Extremistão. Um local imaginário onde fenômenos aleatórios dão origem a efeitos de impacto desproporcional. Um local em que impera a lógica do Winner-takes-all.
Por mais que alguns pesquisadores venham a fazer descobertas científicas que levem a uma quebra de paradigma à la Ciência Revolucionária de Kuhn, ainda assim, pela lógica do extremistão, muito disso deve-se a um movimento mais aleatório do que consciente. Ou seja, esse pesquisador não é tão desproporcionalmente melhor que seus pares como seu reconhecimento e impacto sugerem. A complexidade e aleatoriedade do caótico mundo atual é que gera cada vez mais essas distorções.
Todo esse balde de água fria é para baixarmos mais a bola enquanto pesquisadores e reconhecermos a importância dos nossos pares, que também são pesquisadores, mas que contribuem com a comunidade de outras formas. Eles muitas vezes criam essas pontes com o mundo exterior e não podemos usar a mesma régua para medir seus esforços e resultados.
E por que não?
Porque para estabelecer as ditas pontes, alguns pesquisadores precisam abandonar suas atividades de pesquisa rotineira. Seja por vocação ou por necessidade. Para fazer o mundo científico existir. E isso demanda MUITA dedicação.
Vai você se comunicar com milhões de pessoas como faz Átila pra ver o tanto de dedicação que é necessário. Vai tentar firmar parceria com empresas privadas para financiar projetos de pesquisa pra ver a dificuldade que é. Vai tentar definir políticas publicas pra ver como é difícil convencer os vários agentes políticos.
A maioria dos pesquisadores, obviamente, deve se manter fazendo o trabalho de base. Deve continuar pesquisando e publicando. Esse é o motor da ciência. Sem isso não há ciência. E esse é um trabalho extremamente nobre, que deve ser valorizado.
Mas, caso você, assim como eu, seja um dos peões dessa engrenagem, como a maioria é, procure botar a cabeça pra fora pelo menos de vez em quando. Pra ver se enxerga esse mundão ao seu redor. Não precisa ser você a estabelecer essas pontes. Mas não seja você a colocar bombas para implodi-las. Procure entender o quão importante é cada um desses esforços. Procure entender a dinâmica da coisa toda. Pra não ser engolido por ela.
Caso esse texto tenha sido útil, seria legal se você pudesse dar alguns “claps” para ajudar a divulgar na comunidade.
No twitter (@brunocartaxo) estou sempre conversando e postando sobre a vida de quem faz mestrado e doutorado, inclusive focando em pessoas que atuam no mercado. Se tiver interesse, me segue lá.
]]>Se considerarmos as mídias baseadas na internet (mídias sociais + news websites) a TV perde (e de muito) até mesmo na faixa entre 30–49 anos (64% contra 36%).
FONTE: Pew Research Center E no Brasil? Quer ter um sentimento independente das pesquisas?
Dá só uma olhada no tanto de global, ex-global, além de atores, apresentadores e jornalistas de outras emissoras de TV com canais no YouTube: Xuxa, Marília Gabriela, Giovanna Ewbank, Fernanda Souza, Caio Castro, Celso Portiolli, Adriane Galisteu, Leda Nagle e a lista podia continuar muito além.
Agora basta ver quantos views/inscritos eles têm se comparado com os grandes youtubers (que nasceram na plataforma ou em outras mídias sociais/digitais): Whindersson Nunes, Felipe Neto, Júlio Cocielo, Luccas Neto, RezendEvil e por aí vai.
A diferença é, como seria de esperar, muito grande. É possível ver que a transferência da TV pra o meio digital nem sempre funciona muito bem, e muito provavelmente quando funciona, ocorre por meio de collabs das personalidades da TV com os YouTubers. Um exemplo de transferência bem sucedida é o Celso Portiolli (com mais de 4 milhões de inscritos no momento que escrevo esse texto). Adivinha só, o canal foi criado em Março de 2016 e em Junho de 2016 Celso Portiolli faz um collab com Pyong Lee (nativo do YouTube). Transferência na veia.
Uma thread no Twitter de Felipe Neto mostra ainda mais claramente qual a capacidade da TV (ou a falta dela) em fazer a transferência das mídias offline para as mídias online. Resumindo: A Globo cria personagem influenciadora digital na novela das nove; A Globo cria um perfil na Instagram para essa personagem e divulga amplamente; em 17 horas o perfil tem ~100k seguidores. Isso não é pouco! Mas, como o próprio Felipe Neto observou, o canal com o seu irmão conseguiu 2,2 milhões em 24h. Uma ordem de grandeza acima.
1) Case interessante de analisar.
A Rede Globo colocou uma influenciadora vivida por Paola Oliveira na nova novela das 9.
Como estratégia, criou um perfil real pra ela no Insta e motivou todo mundo a seguir, injetando MUITA mídia pra converter em resultado.
(continua) pic.twitter.com/TNXHnYXVHV
— Felipe Neto (@felipeneto) 29 de maio de 2019
O shift já tá acontecendo, há anos pra dizer a verdade, e os grandes players não serão necessariamente os mesmos. Mas será o fim da TV e da imensa influência da Globo no Brasil? Ou à TV restará a posição secundária que o rádio assumiu quando foi desbancado pela mesma como principal meio de comunicação e centro das atenções?
Um dia o protagonista nas nossas casas já foi esse. Caso esse texto tenha sido útil, seria legal se você pudesse dar alguns “claps” para ajudar a divulgar na comunidade.
No twitter (@brunocartaxo) estou sempre conversando e postando sobre a vida de quem faz mestrado e doutorado, inclusive focando em pessoas que atuam no mercado. Se tiver interesse, me segue lá.
]]>“Aos colegas que já são doutores: É normal passar pela síndrome do impostor? Caso você passou, como superou?”
Nos juntamos em um grupo e cada um foi colocando seus pontos de vista sobre o assunto. Depois de algumas argumentações fiz umas considerações mais longas, mais ou menos na linha do que segue:
De fato essa questão da síndrome do impostor é algo muito pessoal, acho normal porque vejo muitas pessoas na academia sofrendo com isso. Nunca foi algo que me afetou muito, nem mesmo durante o doutorado.
Uma forma de pensar que acredito me ajudar a não embarcar nessas espirais negativas é que, quando me questiono sobre o meu trabalho, sempre é no sentido de procurar achar ações concretas que eu possa fazer para melhorar o trabalho.
Se eu não conseguir enxergar ações concretas dentro do meu alcance, de maneira clara, então todo aquele questionamento é só auto sabotagem e não vale a pena se afundar nisso. Entrega o trabalho como está e segue em frente.
No fim das contas, acho sempre bom dar uma olhada para a origem da angústia, e a síndrome do impostor me parecer vir de um posição de mente em que você acha que não é digno de algo, ou que o seu trabalho não é digno de reconhecimento. Mas daí é uma boa se perguntar quais os seus critérios para que você e o seu trabalho sejam dignos.
Não faz tanto tempo que terminei meu doutorado, então é bem fácil me colocar no lugar de alguém que está tocando um. Normalmente a aceitação de artigos é uma questão crítica, principalmente quando o programa exige isso para defesa da tese. Sendo assim, acho que essa é uma boa medida.
Com o trabalho contínuo, muitas rejeições e o passar do tempo, seus artigos mais cedo ou mais tarde serão aceitos.
Quando isso começa a acontecer, agora é sua vez de aceitar que seu trabalho tem relevância ao menos para aquela comunidade. Se estão te convidando para publicar algo em uma revista ou se apresentar em uma conferência é porque querem escutar o que você tem a dizer. Aceite isso.
Delegar sua confiança ao reconhecimento de seus pares pode ser algo perigoso, mas acho que pra ser bem pé no chão, nessa fase de doutorado, em que ainda se está aprendendo a ser um pesquisador, não tem muita saída.
O Nassim Nicholas Taleb levanta uma questão mais profunda e é bem crítico sobre depositar o sucesso de sua carreira como pesquisador aos seus pares. Para ele esse critério só evidencia uma total falta de “Skin in the Game” do mundo acadêmico.
Sou muito simpático a essa visão do Taleb, principalmente porque apesar de estar no mundo acadêmico atualmente, já atuei na indústria de software como desenvolvedor, arquiteto de software e gerente de projetos por algo em torno de oito anos. Mão na massa total. Ainda assim, pra chegar nessa posição, o Taleb teve que ralar muito. Afinal, ele tem doutorado e foi professor de várias grandes universidades. Teve que conhecer o jogo por dentro e ter um forte embasamento antes de sair tecendo suas críticas mais contundentes.
No livro Homo Ludens, o historiador/filósofo holandês Johan Huizinga argumenta como pode ser danoso para si mesmo se propor a participar de um jogo e durante o andamento desse jogo ficar se opondo às regras do mesmo.
“O jogador que desrespeita ou ignora as regras é um “desmancha-prazeres”. Este porém difere do jogador desonesto, do batoteiro, já que o último finge jogar seriamente o jogo e aparenta reconhecer o círculo mágico. É curioso notar como os jogadores são muito mais indulgentes com o batoteiro do que com o desmancha-prazeres; o que se deve ao fato de este último abalar o próprio mundo do jogo… Torna-se, portanto, necessário expulsá-lo; pois ele ameaça a existência da comunidade de jogadores.”
Johan Huizinga — Homo Ludens
Pois é, as pessoas tendem a ser mais simpáticas com quem fica enrolado e burlando o jogo, mas mantendo a aparencia de que o joga ele, do que quem respeita mas questiona a realidade do jogo. O ser humano tem muita coisa boa, mas também tem dessas.
Por isso acho que uma visão mais crítica à academia não é muito útil e prática pra um aluno que pretende terminar seu doutorado e seguir sua carreira, seja na academia ou fora dela. Acho até que pode gerar mais peso e ansiedade, porque além de ter que atender ao crivo da comunidade científica, ainda pode vir a se cobrar baseado em critérios mais amplos.
Depois que você tiver participado e entender bem a dinâmica e o método científico, aí sim é mais razoável “chutar o balde” como o Taleb fez, pois são críticas com propriedade e embasamento. Do contrário, muito provavelmente é só arrogância e falta de conhecimento, e dificilmente vai levar a canto algum.
Para se ter uma ideia da dificuldade que é o mundo acadêmico, na Biografia de Einstein, escrita por Walter Isaacson, ele conta os perrengues que Einstein passou pra ter os primeiros artigos da teoria da relatividade restrita aceitos. Na época ele era funcionário do escritório de patentes da suíça e não tinha doutorado nem estava fazendo um.
A comunidade não queria aceitar a relatividade como trabalho de doutorado porque era muito distante do que se tinha até o momento. Einstein só foi aceito no “programa de doutorado” quando concordou em mudar sua pesquisa pra algo bem menos impactante. Se não me engano tinha algo que ver com a quantidade de moléculas em gases e o numero de Avogadro. Só depois de passar no crivo acadêmico ele começou a ter os artigos aceitos. ISSO COM EINSTEIN!
Olha só esse trecho, até com algumas palavras do próprio Einstein. Tudo há mais de 100 anos!
“Se, em vez disso, ele tivesse arranjado um emprego de assistente de professor, poderia ter sido pressionado a preparar artigos seguros e tomar muito cuidado antes de desafiar noções aceitas. Como ressaltou depois, a originalidade e a criatividade não eram as principais qualidades necessárias para a academia, sobretudo nos países de fala germânica, e ele seria pressionado a se adequar aos preconceitos e ideias de seus superiores. “Uma carreira acadêmica em que a pessoa é forçada a produzir textos científicos em grande quantidade gera o risco da superficialidade intelectual”, disse.”
Walter Isaacson — Einstein: Sua vida, seu universo
É a mesma coisa até hoje, cem anos depois! A academia é uma maquina de triturar pessoas, como qualquer grande instituição. Não tem saída fácil.
RESUMINDO: Defina seus critérios do que é um trabalho digno, sem se distanciar muito da sua comunidade científica, ao menos enquanto você estiver no início; Segue trabalhando; Segue submetendo artigos relatando os resultados dos seus trabalhos e pegando feedback; Segue questionando o seu trabalho, mas somente até o ponto que os questionamentos levem a ações concretas, do contrário você acaba entrando em um processo de auto sabotagem; Segue executando as ações de melhoria; Conversa com outras pessoas (dentre elas seu orientador(a)) se a coisa ficar muito pesada; Por fim, apresenta o melhor que você conseguir dentro das suas limitações. Caso esse texto tenha sido útil, seria legal se você pudesse dar alguns “claps” para ajudar a divulgar na comunidade.
No twitter (@brunocartaxo) estou sempre conversando e postando sobre a vida de quem faz mestrado e doutorado, inclusive focando em pessoas que atuam no mercado. Se tiver interesse, me segue lá.
]]>Carl Frey e Michael Osborne, pesquisadores da Universidade de Oxford, na Inglaterra, publicaram um artigo em 2013 que tomou de frenesi os veículos de comunicação. O artigo intitulado The Future Of Employment: How Susceptible Are Jobs To Computerisation? apresenta uma pesquisa que tenta identificar quais empregos estão mais ameaçados de deixarem de existir por conta das novas tecnologias. A BBC do Reino Unido criou até um hotsite e qualquer pessoa pode verificar a probabilidade de ser substituído por algum sistema computacional nos próximos anos.
Nesse clima de incerteza, um artigo do New York Times foi um dos primeiros a discutir, na grande mídia, os possíveis impactos das novas tecnologias, mais especificamente, na PRÁTICA JURÍDICA. Diante de todo esse reboliço, afinal de contas quais são essas novas tecnologias que tanta gente de alto calibre enxerga como os motores das mudanças disruptivas em praticamente todos os setores da economia, dentre eles, a prática jurídica?
A INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL COMO MOTOR DAS DISRUPÇÕES DE HOJE E DE AMANHÃ Poderíamos passar horas listando várias tecnologias, mas o que sem dúvida tem gerado mais alarme é a muito conhecida, mas pouco compreendida, Inteligência Artificial (IA). O termo em si pode remeter à livros e filmes de ficção científica e seus personagens robôs, quase ou totalmente humanos. A ficção, no entanto, não poderia estar mais longe da realidade. Ainda estamos muito distantes de algo que possa replicar um ser humano de forma ampla e profunda.
Então do que se trata essa inteligência artificial que ameaça acabar com os empregos?
Software! Isso mesmo, programas de computador, nada de robôs físicos. São algoritmos de base matemática e estatística alimentados por um gigantesco volume de dados, processados por aglomerados de máquinas com uma capacidade ainda mais surpreendente.
Apesar de termos evoluído muito os nossos algoritmos, eles estão aí a um certo tempo e nem por isso possibilitaram o desenvolvimento explosivo da IA como vemos atualmente. Dois pontos cruciais para o atual sucesso das aplicações de IA são: o grande volume de dados (Big Data), e a atual imensa capacidade de processamento. Em cima disso, conseguimos fazer com que máquinas “leiam” documentos escritos por humanos através de algoritmos de Processamento de Linguagem Natural (NLP) e “aprendam” através de algoritmos de Aprendizado de Máquina (Machine Learning). Juntando tudo isso, estamos conseguindo criar softwares que atingem níveis mais elevados do que humanos em atividades como por exemplo: análise e interpretação de documentos, resposta à perguntas abertas e até predição de eventos.
Daí podemos nos perguntar se toda essa parafernália tecnológica não está mais para ficção científica do que realidade.
A INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL NA PRÁTICA JURÍDICA: JÁ ESTÁ ACONTECENDO! Toda essa tecnologia pode parecer ficção científica, ou algo muito distante que ainda está em fase de pesquisa seminal. Mas se você pensa assim, não poderia estar mais errado. Já existem inúmeros produtos e serviços sendo desenvolvidos, e até já em funcionamento há alguns anos, por mãos de grandes empresas de tecnologia e/ou Startups, as ditas Lawtechs/Legaltechs. É bom lembrar delas, pois essas empresas tem um grande potencial de bagunçar o meio de campo da prática jurídica, assim como as Fintechs tem tirado o sono do mercado financeiro e até dos grandes bancos.
Imagina um software que você desse como input um contrato e ele apontasse exatamente quais cláusulas precisam ser editadas baseado em políticas legais pré-estabelecidas, ou até automaticamente aprovar um contrato quando aderir à todas essas políticas. Esse tipo de software existe, o LawGeex, por exemplo utiliza um engine de IA pra tornar isso realidade. Para ter uma ideia do nível que essas ferramentas de software estão atingindo, recentemente foi feito um experimento onde entregou-se cinco contratos de NDA (non-disclosure agreement) para serem revisados e analisados por 20 advogados, e os mesmo cinco contratos foram usados como input para o LawGeex. ADIVINHA SÓ… Os advogados humanos concluíram a análise dos cinco contratos numa média de 92 minutos, enquanto o LawGeex entregou sua análise completa em 26 segundos. O mais assustador ainda está por vir, o nível de precisão do LawGeex foi de 94%, enquanto os advogados humanos tiveram uma precisão de 85%. Vale lembrar que os advogados humanos não eram estagiários, nem mesmo advogados júnior, mas sim profissionais com reconhecida experiência na área. Dá pra imaginar o impacto disso? Empresas que possuem departamentos jurídicos poderiam agilizar suas operações e passar a fechar contratos mais rapidamente. O setor operacional poderia dar entrada em contratos nesses sistemas e obter aprovação sem sequer passar pelo departamento jurídico. Em casos de contratos que não atendam a todas as políticas, o departamento jurídico já teria acesso diretamente a quais cláusulas precisam ser analisadas e cortaria grande parte do processo de revisão.
No âmbito de Legal Research, ou seja, o processo de encontrar respostas para perguntas de cunho legal, já existem sistemas que mineram dados públicos das mais variadas fontes em busca de leis, precedentes e jurisprudências que possam ser citados em um processo. Exemplos são o Casetext e o ROSS Intelligence. O segundo é baseado no mais avançado sistema de IA da IBM, o Watson, que recentemente ganhou dos campeões do mundo de Jeopardy, um famoso game de perguntas e respostas sobre conhecimentos gerais.
Ainda no ramo de mineração de dados públicos, existem soluções de software baseados em algoritmos de IA que conseguem prever como um determinado juiz irá julgar um caso e gerar pareceres que de outra maneira poderiam demandar extensa pesquisa. O LexMachina é um exemplo desse tipo de software. No sentido inverso, pesquisadores da University College London apresentaram um algoritmo que “assume o lugar do juiz”. O software chegou ao mesmo veredicto da corte inglesa (composto por juízes humanos) em 79% dos casos. Imagina o impacto de um software desse rodando em larga escala nas varas de justiça brasileiras. Redução do quantitativo de juízes? O tempo dirá.
No âmbito de Propriedade Intelectual (PI), há sistemas que permitem dar suporte ou até mesmo automatizar todo o processo de registro e acompanhamento de patentes, marcas e licenciamentos. Um dos exemplos é o TurboPatent que permite o registro totalmente automatizado de uma patente, além de sugerir mudanças que podem evitar a rejeição da patente que se deseja registrar. Outro exemplo é o CompuMark, que aplica algoritmos de reconhecimento de imagem e sugere possíveis colidências com marcas pré-existentes. Nesse mesmo sentido, há sistemas que permitem prever a probabilidade de aprovação de registros de patente e marca baseados em predições probabilísticas em cima do histórico público de pedidos.
Todos os sistemas inteligentes citados são apenas uma pequena amostra de uma grande variedade de produtos que estão pipocando todo dia no mercado de Lawtechs. Dá só uma olhada nesse diagrama que lista empresas e produtos de base tecnológica que se propõe a automatizar ou semi-automatizar as mais variados atividades e processos da prática jurídica.
Fonte: The In-House Counsel’s Legal Tech 2018 Buyer’s Guide A maioria dos sistemas que mencionamos não substitui totalmente o olhar de um jurista, mas sem dúvida são capazes de reduzir drasticamente o exército de advogados júniors que normalmente são contratados para desempenhar esses tipos de atividades. Esse é um cenário clássico onde temos a aplicação de tecnologia trabalhando em conjunto com a força de trabalho humana, aumentando a produtividade, reduzindo postos de trabalho, mas não extinguindo esse tipo de profissional.
Mas todas essas empresas e produtos são de base internacional, tipicamente em países de primeiro mundo e provavelmente ainda vão demorar muito para virar realidade no Brasil, certo? Será?
LAWTECHS NO BRASIL E SEU IMPACTO NA PRÁTICA JÚRIDICA Como disse Thomas Friedman em 2005, vivemos em mundo plano, e se pessoas e empresas desejam se manter competitivos, precisam pensar em termos de mercados globais. A bem da verdade, passada a euforia da globalização do final dos anos 90 e começo dos anos 2000, vimos que o mundo não é tão plano como Friedman pensava, pois várias tensões geopolíticas frearam o trânsito de pessoas, capital e comércio. Ainda assim, como podemos ver no gráfico abaixo, a informação entre nações segue fluindo cada vez mais rápido. E isso é suficiente para chacoalhar o mercado interno de qualquer país.
Fonte: Harvard Business Review Afinal de contas, se há dificuldade na entrada de empresas e capital estrangeiros, o que impede que empreendedores brasileiros, ao observar as tendências de uso de IA na prática jurídica, implementem eles mesmo suas soluções no mercado nacional?
Pouco ou nada, dá só uma olhada no tanto de Lawtechs brasileiras que já estão, agora, desenvolvendo produtos e serviços de base tecnológica para aplicação direta na prática jurídica.
Fonte: LegalTech Brasil No final de 2017 houve até um evento nacional em São Paulo, o Lawtech Conference, para discutir e apresentar as inovações que estão vindo por aí, pelas mãos das startups de base tecnológica. A conferência foi patrocinada por vários grandes escritórios de advocacia brasileiros e até multinacionais de gigantesco porte como a Thomson Reuters.
Um exemplo de produto em desenvolvimento no Brasil é a Dra. Luzia, um software baseado em princípios de inteligência artificial, as redes neurais, em desenvolvimento pela Legal Labs. Essa Lawtech brasileira que foi selecionada pela Intel como uma das 16 principais empresas do mundo com empreendimentos baseados em IA. A Dra. Luzia foi implementada em uma Procuradoria de Estado, que antes processava cerca de 1000 petições por semana, e conseguiu processar 68% dessas petições em 1m56s, com uma precisão de 99,48%. Imagina quando isso for implantado de forma definitiva, a revolução que ocorrerá no judiciário. Pois é, não somente o setor privado, mas também o setor público deverá passar por grandes mudanças. Será que a enorme quantidade de vagas em concursos públicos para técnicos do judiciário seguirá crescendo diante dessa nova realidade? O estudo de Frey e Osbourne, sugerem que não!
Fonte (Adaptada): The Future Of Employment: How Susceptible Are Jobs To Computerisation? A COMODITIZAÇÃO DA PRÁTICA JURÍDICA No meio de toda essa escalada de produtos/serviços baseados em softwares inteligentes, é inevitável pensar na comoditização da prática jurídica. Afinal, qual o valor do profissional do direito num contexto em que softwares estão automatizando ou semi-automatizando boa parte do trabalho que antes era exclusividade de um profissional tido como de alta qualificação?
É comum pensar que nesse cenário só existem dois possíveis resultados, ser ou não ser substituído por softwares inteligentes. Richard Susskind, Professor Emérito de Direito da Gresham College em Londres, mostra no livro Tomorrow’s Layers que a realidade, como sempre, pode ser um pouco mais complexa, e que os serviços prestados pelos profissionais da prática jurídica na realidade evoluem em pelo menos quatro etapas.
FONTE: Tomorrow’s Layers: An Introduction to Your Future Sob Medida (Bespoke): Serviços sob medida de fato demandam extenso conhecimento e participação ativa de juristas especializados, mas Susskind afirma que esses tipos de serviços são mais raros do que os advogados costumam acreditar. Para ele, a maioria dos serviços jurídicos tendem a ser mais padronizados ou sistematizados. Padronização (Standardization): Aqui o serviço que é prestado por escritórios ou departamentos jurídicos, mas apoiado por checklists e templates padronizados que auxiliam o profissional jurista a definir a melhor maneira de abordar um problema e criar documentos com base no que já foi feito no passado. Por exemplo, um contrato de trabalho seria confeccionado usando checklists e templates pré-existentes, fazendo-se apenas ajustes pontuais. Tudo baseado na experiência já acumulada ao lidar com esses tipos de problemas. Sistematização (Systematization): Quando um serviço jurídico já está sendo prestado no nível da sistematização, normalmente softwares já cobrem todo o fluxo do serviço em si, e muitas vezes já estão a um passo de serem, ou totalmente automatizados, ou feitos sem a necessidade da atuação de um profissional da prática jurídica. Um exemplo disso é um sistema que gera contratos padronizados baseado num formulário em que o usuário responde perguntas pré-definidas. Esse tipo de sistema já é amplamente usado em departamentos jurídicos de empresas, que conseguem aumentar a produtividade e reduzir o quadro de advogados. Externalização (Externalization): O último passo no sentido da comoditização ocorre quando “empacota-se” o conhecimento jurídico em serviços online. Pessoas não especializadas podem ter acesso a esses serviços a um custo baixo, sem nenhuma atuação direta de um profissional jurista. Aqui podemos ter, desde sites de discussão abertos, onde o conhecimento é construído e compartilhado num formato Wikipedia ou Yahoo Perguntas; passando por serviços oferecidos gratuitamente pelo governo e ONGs; até sistemas criados por empresas que cobram assinaturas ou valores pontuais para uso desses serviços. Tudo isso está muito alinhado com o movimento DIY (Do It Yourself) que é abraçado principalmente pelos nativos digitais e está presente nas mais variadas áreas de conhecimento, não somente no direito. Só pra ter uma ideia, um adolescente do Reino Unido criou um sistema online que gera automaticamente petições para apelar contra multas de estacionamento e o disponibilizou gratuitamente. Até 2015, mais de 86 mil pessoas já haviam utilizado esse serviço, economizando ao todo, em torno dois milhões de libras esterlinas (algo como R$ 10 milhões). O sucesso do serviço foi tão grande que já foram implementados vários outros serviços automatizados, como por exemplo, geração automática de petições contra companhias aéreas por atraso ou overbooking; petições de reembolso por problemas com aplicativos como Uber e Lyft, dentre outros. Mas engana-se quem acha que é impossível ganhar dinheiro com serviços prestados no nível da externalização. Um exemplo disso é o site brasileiro, Como Registrar, que permite que qualquer empresa faça registro de marcas inteiramente online e cobra um valor por esse serviço. Surge aqui oportunidades para profissionais do direito se unirem com especialistas de software para empreender criando sistemas dentro da filosofia DIY. Dentro desse contexto de comoditização da prática jurídica, é importante ter em mente que um serviço prestado por um profissional jurista não precisa necessariamente estar inteiramente em um dos quatro níveis de comoditização. Até porque esses serviços não são monolíticos. Eles certamente são compostos por atividades menores, que podem ser decompostas.
COMO ENTENDER A PRÁTICA JURÍDICA NESSE NOVO CENÁRIO A decomposição do trabalho jurídico provavelmente é o ponto fundamental para entender de fato quais atividades estão mais suscetíveis à comoditização e principalmente pensar no futuro da prática jurídica como um todo. Pra ter uma ideia de como funciona essa decomposição, o Professor Susskind dá uma pista. Por exemplo, ele sugere que uma ação de litígio pode ser dividida nas seguintes atividades:
Revisão de documentos (Document Review) Pesquisa legal (Legal Research)
Gerenciamento de projeto (Project Management)
Suporte à litígio (Litigation Support)
Disclosure
Estratégia (Strategy)
Tática (Tactics)
Negociação (Negotiation)
Advocacia (Advocacy)
FONTE (Adaptado): Tomorrow’s Layers: An Introduction to Your Future
Olhando para essas atividades é possível visualizar que quanto mais no topo, mais suscetível ao processo de comoditização e em consequência automatização, visto que são atividades que já tem um alto grau de padronização ou sistematização. Já existem softwares que automatizam, ou semi-automatizam boa parte dessas atividades. Por exemplo, o Clerk da Lawtech americana Judicata, semi-automatiza ao menos três das nove atividades que compõem uma ação de litígio: revisão de documentos, pesquisa legal e até a estratégia. Tudo que o jurista precisa é fazer o upload do documento da ação de litígio. Em questão de poucos segundos o Clerk já mostra a que veio. Munido de algoritmos de IA e uma gigantesca base de dados públicos, o Clerk sugere argumentos de outros casos bem sucedidos que não foram incluídos no documento; verifica se existe um bom balanceamento entre casos que apoiam e são contra os argumentos da ação; analisa se casos com argumentos semelhantes tiveram uma boa ou má taxa de sucesso, inclusive levando em consideração qual juiz irá julgar a ação de litígio; e até verifica se houve algum erro ao citar outros casos. Provavelmente a melhor forma de ter uma ideia de como uma ferramenta como o Clerk é assustadora, é dar uma olhada no demo que fica disponível online. Também vale a pena dar uma olhada em posts de blogs (post, post) explicando como a ferramenta funciona.
Nesse contexto, fica evidente como é importante mudar de um pensamento onde os serviços jurídicos são pensados de forma monolítica, para passar a decompor o trabalho em atividades menores e mais específicas. Esse tipo de entendimento é fundamental tanto para que os escritórios e empresas que prestam serviços jurídicos possam identificar oportunidades de implantar sistemas que aumentem a produtividade e reduzam os custos, como para os profissionais da prática jurídica, para que possam direcionar seus esforços no sentido de se colocarem no mercado como especialistas nas atividades que tem menos chance de serem automatizadas ou sofrerem forte redução de demanda. Porque é assim que empresas de software atuam, sempre buscando decompor problemas grandes e de difícil automatização, em problemas menores e tratáveis, do ponto de vista computacional. É exatamente assim que os algoritmos são construídos, vide o princípio de dividir para conquistar que é repetido como um mantra desde as primeiras aulas de programação em um curso de computação, até o fim da carreira de qualquer profissional de desenvolvimento de software. Se manter informado sobre os avanços das novas tecnologias e, tanto quanto possível se associar a profissionais de software, pode ser um grande diferencial para as empresas, profissionais e aspirantes a empreendedores que desejarem manter e melhorar sua posição no mercado.
Acredito que com os exemplos das ferramentas que já existem no mercado nacional e internacional é possível entender que a mudança já está acontecendo, e é concreta, mesmo que não tenha chegado até você, ainda. Mas, como diz William Gibson, “O futuro já chegou. Só não está uniformemente distribuído”.
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